Estação primeira


“É verde e rosa a cor da tua bandeira
Pra mostrar a essa gente
Que o samba é lá em Mangueira”

Atravessou o asfalto branco como quem anseia pelo sinal verde. E, de verdade, anseia. Os cachos bagunçados, arrepiados, batendo com força na camisa azul marinho do uniforme de Carnaval. O corpo rasgando o vento, que já dera tanto trabalho às portas-bandeiras naquela noite. Cruzou o segundo recuo da bateria como se não desse a mínima para o samba. Mas dava! Do primeiro, nem pode acompanhar, porque a escola já havia chegado. Precisava se apressar. Sinal verde. Ouviu os fogos estourando atrás de si. Arquibancadas em pé.

De repente, parou.

- Eu menti.

De poucos centímetros mais alto, talvez quatro ou cinco, partiu um olhar surpreso, quiçá questionador. Conheciam-se não faziam três meses, desde uma noite no Largo da Carioca. Ele, após um encontro com uma ex-BBB. Ela, após a feijoada da Mangueira. Nenhum dos dois fazia ideia de como se perdera ao ponto de chegar ali. Não era caminho para ambos. Mas conversaram, e foram embora no mesmo metrô.

“Sonhei que nessa noite de magia
Em cena, encarno toda poesia
Sou abelha rainha, fera ferida, bordadeira da canção”

Era de madrugada quando ele a levou em casa, outro dia. Se despediram no portão do prédio baixo, de quatro andares e um terraço. Ele fez questão de levá-la até a porta. Diante do medo, ela se virou antes de trancar o cadeado. Ele tinha esperado, observando de longe, na esquina. “Obrigada”, disse, quase sussurrando. Com meio sorriso e um aceno de cabeça, ele respondeu.

Desde então, não se viram mais.

- Eu sou Mangueira.

Ser Mangueira, para ela, não é só torcer por uma escola de samba. É algo que transcende as razões da própria existência, que questiona o sentido de pertencimento, que põe em cheque toda sua história até então.

Na verdade, tinha dito a ele que mal se importava com Carnaval. Parecia o mais correto para quem trabalha nos dias de folia. Por que, então, estaria ali? Respondeu que era só pelo dinheiro. Por que conhecia todos os sambas? Ossos do ofício.

Não convenceu, mas ele aceitou.

- Eu sei. Eu percebi. Você não consegue esconder.

Conheceu-a no momento em que a ouviu dizer, com tanta paixão, lágrimas nos olhos e como se se livrasse de um peso, o nome da sua escola do coração. Era como se desnudasse toda a sua alma, como se abrisse o baú de todos os seus segredos. No caso dela, ser Mangueira explica muita coisa.
Dele, ela não sabia a escola do coração, muito menos o time para o qual torcia. Apenas alguns detalhes sobre trivialidades: que assistia House of Cards, que leu Vidas Secas, que sua cor preferida era o verde e que torcia pro boi Caprichoso. Ela, embora nunca tivesse ido a Parintins, era Garantido desde sempre.

“Sou trapezista num céu de lona verde e rosa
Que hoje brinca de viver a emoção
Explode coração”

Ela era um livro aberto. Talvez, um livro aberto em mandarim. Para ele, foi fácil. Bastou um olhar um pouco mais apurado, meias palavras trocadas e algum momento ouvindo o samba de exaltação da verde e rosa.

- Vem comigo?

Não precisaram ir. Foram levados pela maré do arrastão do povo que festeja a Mangueira. Encaixou a alegria de ver e de viver sua escola em algum comentário após o desfile, minuciosamente pensado debaixo dos Arcos da Apoteose.

Felicidade, naquele dia, se tinha nome, era o dela.

Escrevia bem e, para uma iniciante no ofício, até que teceu bons comentários. Isso foi ele quem disse. Talvez por isso fosse tão fácil de ser interpretada.
Any Cometti é jornalista, mas antes de tudo é mangueirense. Feminista, CAPS LOCK e apaixonada por samba, decidiu colaborar com o blog falando do que mais toca seu coração: o Carnaval.