A prateleira de cima



Todas as histórias de um escritor são sobre ele. Sobre suas diversas formas de ser e ver o mundo. Mas ele tem que começar por algum lugar. Algo tem que fazer ele levantar da cadeira e seguir. Para mim, sempre foram as prateleiras. 

Antes do amor pelos livros, veio o amor por elas. Olhar para as prateleiras sempre me fez bem. Era, para mim, uma representação de mundo bem maior do que o mapa - confuso e cheio de interesses políticos. Todas aquelas cores, tamanhos, texturas e nomes exóticos de autores eram um prato cheio para uma criança. Uma criança estranha como eu, claro.

Todas as vezes que tinha uma festa na casa do meu tio eu me animava. A perspectiva de entrar no escritório dele e me deparar com aquela infinidade de livros em todos os cantos era emocionante, mesmo que eu não fosse escolher nenhum livro no fim das contas. 

Depois de anos fazendo isso quase todo mês, os livros das prateleiras que eu alcançava foram acabando. Mesmo que, nesse ponto, eu já tivesse a mesma altura que tenho hoje, não era o bastante para ir na bendita prateleira de cima. Peguei uma cadeira e subi. Descobri que ali ficavam alguns livros de direito do meu tio - que pareciam ser bem importantes -, coleções clássicas  e alguns livros avulsos. Eu não entendi a lógica da organização, mas isso nunca foi meu forte. Larguei de mão.

Dentre esses livros, estava ele. Um livro de capa amarronzada, com desenhos que pareciam, ao mesmo tempo, infantis e complexos. “Palavras Andantes”, um título que adorei de cara. Nada no mundo é mais veloz do que as palavras. Nada pode andar tanto quanto ideias, histórias. “Eu colocaria esse título em um livro”, pensei comigo mesma.  Mas o autor era um tal de Eduardo Galeano. O nome “Eduardo” não soava sério e prestigioso como “Machado”, “Leon”, “John”, “Frederic”ou tantos outros que eu lia com uma certa distância polida. Era maroto, faceiro. Como um colega de escola, que poderia me falar algo que eu achasse demais sem parecer pretensioso.

Peguei o livro e devorei. Embora tenha demorado um tempo considerável para devolver. Lia cada um dos seus contos-lendas-anedotas várias vezes, tentando extrair tudo dele. E, quando o livro se foi, eu fui atrás de tudo que eu pudesse sobre esse tal Eduardo.

Descobri que, assim como muitos autores latinos, apesar de muito prestigiado mundo afora, ele tinha ficado meio esquecido aqui nas terras tupiniquins. A velha síndrome do colonizado. E que, embora Galeano tenha suas raízes políticas bem fortes, sua mensagem principal era a tolerância. Que ele era a favor da liberdade acima de tudo e contra os preconceitos mais do que tudo. Descobri, também, que ele não tinha seus trinta anos, como eu podia imaginar, mas que tinha preservado toda a sua juventude em forma de esperança nesse mundo caótico e lindo. 

Ontem, quase dez anos depois de ter andando com suas palavras, eu fui dormir com um apertinho no coração. Aquela criança que subiu nas prateleiras almejando alcançar o céu encontrou muita gente incrível feita de papel e tinta. Mas poucos vão deixar uma lacuna tão grande quanto aquele senhorzinho de olhos faceiros. Suspirei e fechei os olhos. "Pode deixar Galeano, eu nunca vou deixar de caminhar".