De pouco em pouco





 Ela estava sentada na calçada. O rímel borrado e a garrafa vazia frouxa entre as mãos. As pupilas dilatadas e os dentes serrados.
- Vai embora! Sai! Eu sei que você quer me deixar sozinha. Ela disse sacudindo os braços na minha direção.
- Não, não vou. Eu disse, calma. Não sei porque, mas eu era a única sóbria aquela noite.
- Quer sim! Você e todo mundo, todo mundo quer me deixar sozinha! ela disse, virando para o lado e cruzando os braços. Ela estava com raiva de muita coisa. E eu sei que "eu"  não era uma delas.
- Mas eu não. Eu sou sua amiga queridinha - comecei, meio brincando, meio dando esporro -, agora já era. Vai ter que aguentar alguém que não vai deixar você sozinha.
   E ela calou. Como quem escuta uma voz amarga no fundo, que joga uma coisa na cara e depois nos abandona sem esperar por uma replica. Eu disse que ia chamar um taxi, e ela concordou.  Com a cabeça, sem dizer nada.
  O taxi chegou e nós duas fomos atrás. Acompanhadas por outra amiga, que também não estava "bem", mas que tinha tido a reação de ficar imersa em seu próprio mundo. E foi ai que ela encostou a cabeça no meu ombro e chorou. Muito. Como uma criança que descobre que vai ficar longe dos pais. Como uma adulta, que pensa muito sobre a vida e se desola com a falta de conclusão e solução para as coisas.
    E eu quis dizer muito. Quis dizer que entendia a sua angustia. Que lhe perdoava por qualquer que seja a coisa errada que ela acha que fez. Que muitas vezes me sentia exatamente igual ela, mas que, minha reação era reler Harry Potter e a Pedra Filosofal pela milésima vez. Que as pessoas são diferentes, e que quando as diferenças não se batem é que as relações vão se construindo. Eu queria dizer, mas não disse. Apenas abracei de volta. Apenas chorei de volta e alisei o seu cabelo.
 
   Acho que essa foi a primeira vez que a vi chorar. Não foi a última, mas foi a que mais me marcou. E foi porque foi tão intimamente sincera. Ela, sendo assim, um pouco ela, um pouco Ana, abriu-se inteira, para quem quisesse ver, e esse uma das coisas que eu tenho mais medo. E foi naquele momento, que ela achou ser fraqueza, que eu achei mais forte.

E nesse momento, nesse exato momento, onde a  vida obriga a ser forte, eu digo que a amizade se constrói assim. Queda e salto. Riso e choro. Gota por gota. Mas eu estou aqui, caso você precise transbordar.