Ascensão e queda da Deusa Alice




Tinha cheiro de angústia. A casa toda. Catharina entrou e foi a primeira impressão que teve. Embora estivesse limpa, arrumada, decorada por algum decorador(a) de renome, a casa tinha essa cheiro ruim. Catharina sorriu ao abraçar a amiga. Tinha dois anos que ela não via Alice. 

No dia em que se conheceram, Catharina logo percebeu que muitas meninas não gostavam de Alice. Elas tinham apenas oito anos e aquela competição que é imposta às meninas já tinha começado. Alice era bonita demais para o próprio bem. Parecia ter saído de um comercial de plano de saúde ou margarina. Catharina não ligou pra isso. O importante é que Alice sabia ouvir todas as histórias que ela contava e isso era o bastante. 

Os anos se passaram e Alice era cada vez mais bonita. Catharina tinha ouvido de tudo. Que a amiga era muito “atirada”, que ia roubar todos os namorados dela e até que ia sujar a sua reputação. Teve uma vez que Catharina chegou a se alegrar, quando disseram que não adiantava nada ser bonita igual a Alice se fosse para ser “fácil”. Bom mesmo era ser igual ela, Catharina, que escolhia bem com quem andava. 

Alegrou-se por um minuto, mas era mentira, mentira deslavada. Ela queria mesmo era ter um leque de opções enorme para escolher com quem “andar”. Queria mesmo sair com tantos caras que as pessoas iriam chamá-la de fácil, mesmo sem saber que esses cinco ou seis eram, na verdade, os sorteados entre os mais de 30 à disposição. Um dia, Catharina leu essa revista Capricho que tinha um artigo “Maldita amiga deusa - Como lidar com a sua amiga super linda que te ofusca”.  As dicas iam de elogiar uma roupa que a desfavoreça até falar de um assunto que ela não tenha conhecimento para mostrar que ela é, na verdade, só um rostinho bonito. 

Catharina achou essa matéria tão péssima que nunca mais leu essa revista. Aí percebeu as loucuras que essas revistas femininas passavam para as mulheres. Perguntou-se: Para quem isso é escrito? Quem escreve? Foi que se aprofundou no feminismo. Tudo que um dia ela pode pensar de mal sobre Alice foi se perdendo no ar com o tempo. O tempo e o conhecimento de si mesma. Embora a faculdade, os empregos e os novos amigos tenham as separado cada vez mais. 

Agora, Alice tinha se casado. Com um homem completamente apaixonado que fazia tudo por ela. E, mesmo assim, essa casa tinham cheiro de angústia. Catharina contou da viagem que tinha feito, e esse violinista louco que ela tinha conhecido no bar. Alice ouvia, como sempre atentamente. Disse que não tinha nada pra contar, tudo na mesma. 

Catharina perguntou se ela estava feliz no casamento. Alice demorou para responder. Mexeu a panela no fogo e disse que sim. Sim. Mas que casou rápido demais. Que poderia ter saído mais, conhecido outras pessoas. Por que se casou, então? Catharina perguntou aflita pela amiga. Alice respondeu, quase como um sussurro: “É para isso que nós somos preparadas a vida inteira. Nós, as menininhas perfeitas. Para estarmos lindas no casamento. Para que os outros digam que, mesmo que pareça impossível, estamos ainda mais lindas hoje. Para que digam aos nossos noivos que poderíamos ter escolhido qualquer um, mas escolhemos ele. Para que nossas mães se orgulhem, de ter a noiva mais linda da família como filha. Eu tenho 25 anos. Em breve, tudo isso se vai. Como meus dias de musa no ensino médio. Eles conseguem. Eles conseguem, pouco a pouco, te transformar no que esperam de você ”. 

Como se nada tivesse acontecido, como se ela não tivesse dito nada, continuou mexendo a panela e perguntou “Você prefere molho branco ou de tomate?”. Catharina queria dizer muita coisa. Que ainda tinha tempo, que isso não era verdade, que ela estava errada. Que ela era ótima. Mas apenas respondeu “Tomate” e ficou perplexa.  Passou a se perguntar se ela tinha dito alguma coisa mesmo, ou se tinha sido fruto da sua imaginação. 

E quanto mais Alice mexia a panela, mais o cheiro de angustia de espalhava pelo ar.